Cultura

O Auto da Liberdade

A partir desta semana vamos começar a tratar alguns episódios históricos de Mossoró que estão inseridos no espetáculo teatral “Alto da Liberdade”, que anualmente é encenado em praça pública para lembrar as novas gerações os feitos heróicos dos nossos antepassados.

São quatro momentos da nossa história: a Libertação dos Escravos de Mossoró, ocorrida em 30 de setembro de1883, que é o carro-chefe do espetáculo. A Revolta das Mulheres, episódio ocorrido em 30 de agosto de 1875, onde cerca de trezentas mulheres foram às ruas para protestar contra a obrigatoriedade do alistamento militar, rasgando os editais de convocação e enfrentando a polícia, tendo como armas apenas panelas e outros apetrechos domésticos. Outro episódio que também faz parte do espetáculo é a defesa de Mossoró contra o bando de cangaceiros chefiados por Virgulino Ferreira da Silva, o temível Lampião, em 13 de junho de 1927 e finalmente a primeira concessão de voto a uma mulher, que foi concedida a professora Celina Guimarães Viana, em 25 novembro de 1927.

Mossoró foi a primeira cidade do Rio Grande do Norte a fazer campanhas sistemáticas para libertação dos seus escravos. Não foi uma luta de poucos; foi uma luta que envolveu, de uma maneira ou de outra, toda a cidade. E por ter sido uma luta coletiva, pacífica e pioneira no Estado, é comemorada ainda hoje como sendo a maior festa cívica local.

Mossoró, particularmente, nunca foi uma cidade escravocrata. Possuía apenas 153 escravos em 1862, para uma população livre de 2.493 indivíduos. Estatisticamente o percentual era insignificante. A cidade não tinha engenhos; cuidava do gado e para isso não precisava de muitos braços. A idéia de libertação foi trazida do Ceará, através da Loja Maçônica “24 de junho”, e conquistou a opinião pública. E como isso aconteceu?

Em 6 de janeiro de 1883 foi criada “A Sociedade Libertadora Mossoroense”, uma entidade cujo objetivo era tornar viável a libertação de todos os escravos da cidade de maneira pacífica e ordeira. A Sociedade Libertadora tinha um Código, com um único artigo e sem parágrafos, onde estava determinado que “todos os meios são lícitos a fim de que Mossoró liberte os seus escravos”.

Nessa época, Mossoró contava apenas com 86 escravos. A 10 de junho eram alforriados 40 desses escravos. A idéia empolgava a toda população, de modo que nenhum fez questão alguma de liberar seus escravos, independente de indenização.

O dia 30 de setembro de 1883 foi a data designada para a liberação total dos escravos; e o objetivo foi alcançado.

No dia 30 de setembro de 1883, a cidade amanheceu com as ruas todas engalanadas de folhas de carnaubeiras e bandeiras de papel coloridas. A alegria contagiava todos os lares. Ao meio-dia, a Sociedade Libertadora Mossoroense se reunia no 1º andar do prédio da Cadeia Pública, onde funcionava a Câmara Municipal. O Presidente da Sociedade Joaquim Bezerra da Costa Mendes, abre a solene e memorável sessão, lendo em seguida, diversas cartas de alforria dos últimos escravos de Mossoró, e depois de emocionado discurso declara “livre o município de Mossoró da mancha negra da escravidão”.

Depois da sessão, a festa tomou as ruas da cidade. O Dr. Almino Afonso pronunciou inúmeros discursos, empolgando os auditórios que o aplaudiam delirantemente. E foi também o Dr. Almino Afonso que criou o “Clube dos Spartacos” composto, na sua maioria, por ex-escravos, tendo sido eleito presidente o liberto Rafael Mossoroense da Glória. A função desse clube era dar abrigo e amparo aos ex-escravos, que aqui chegavam por mar ou por terra. Era a tropa de choque dos abolicionistas. Como território livre, Mossoró passou a ser procurada por todos os escravos que conseguiam fugir. Sabiam que aqui chegando, encontravam abrigo. O Clube dos Spartacus sempre conseguia evitar que os escravos voltassem com os donos. Tudo isso aconteceu cinco anos antes que a Princesa Isabel assinasse à famosa “Lei Áurea”, que acabava com a escravidão em todo território nacional.

O dia 30 de setembro passou a ser a grande data cívica da cidade. A Lei nº 30, de 13 de setembro de 1913, declara feriado o dia 30 de setembro que até os dias atuais é comemorado com muito entusiasmo pela cidade de Mossoró.

O segundo episódio retratado no espetáculo Auto da Liberdade é o que ficou conhecido como a Revolta das Mulheres ou Motim das Mulheres de Mossoró.

O Motim das Mulheres de Mossoró foi um movimento de protesto ocorrido em 30 de agosto de 1875, contra a obrigatoriedade do alistamento militar para os jovens.

Corria o ano de 1875 e o país vivia uma fase de intensa vibração partidária. Vários movimentos populares estouravam no Brasil e o clima se agravou mais com a queda do Gabinete de 7 de março de 1871, presidido pelo Visconde do Rio Branco. Para substituir o Visconde, o Imperador convidou o Duque de Caxias para organizar o Ministério de 25 de junho. Ao assumir o Ministério, no entanto, Caxias deparou-se com uma medida extremamente impopular: o Decreto nº. 5.881 de 27 de janeiro de 1875, que aprovava o regulamento do recrutamento para o Exército e Armada. O objetivo do recrutamento obrigatório era de dotar o país de uma tropa de reserva treinada e não, como é anunciado por alguns órgãos da mídia, recrutar soldados para a Guerra do Paraguai, visto que a Guerra havia terminado desde 1870. Mas o recrutamento, que no momento era indispensável e lógico, exasperou o povo e constituiu elemento poderoso de irritação coletiva. E em quase todo o país estalaram tumultos provocados pela aplicação da lei do recrutamento.

No Rio Grande do Norte vários protestos populares surgiram contra a aplicação da tal lei. Em Arês, a 1º de agosto, homens e mulheres seguidos por um grupo de indígenas armados de faca e cacetes invadiram a Igreja Matriz e destruíram tudo que dizia respeito ao recrutamento como livros, papéis e editais. No mesmo dia, no município de Canguaretama, um grupo de homens e mulheres invadiram a Igreja onde estava sendo feito o alistamento, rasgando e queimando toda a documentação. Nessa luta, o capitão João Paulo Martins Nanninguer mandou dispersar o movimento à baioneta e ficaram feridas dezesseis pessoas. No município de Goianinha ocorreu movimento idêntico.

Em Mossoró, o movimento não passou em branco. Mais uma vez a fibra do povo mossoroense foi mostrada. Ninguém desejava que seus filhos fossem apanhados para o serviço militar, notadamente quando era sabido das intenções dos chefes políticos dominantes em darem preferência a filhos de adversários. Foi aí que um grupo de mulheres, inspiradas nos movimentos que estavam acontecendo no restante da Província, promoveram uma manifestação e consequente passeata pelas ruas da cidade, rasgando os editais afixados na Igreja de Santa Luzia como também livros e papeis relativos ao alistamento, encaminhando-se depois a redação do jornal O Mossoroense, onde destruíram cópias dos editais que ali estavam para serem publicados. Saindo dali, foram para a Praça da Liberdade, onde entraram em luta corporal com os soldados que haviam sido enviados para dominar a rebelião, tendo como resultado algumas mulheres feridas, só não assumindo consequências mais graves graças a interferência de outras pessoas que se encontravam no local.

O movimento contou com a presença de mais de 300 mulheres, que eram chefiadas por Ana Floriano, uma mulher alta, forte, de olhos azuis e cabelos louros, que vinha a ser a mãe do jornalista Jeremias da Rocha Nogueira, fundador do jornal O Mossoroense. Outras mulheres que se destacaram no movimento foram Maria Filgueira, esposa do Capitão Antônio Secundes Filgueira e Joaquina Maria de Góis, mãe do historiador Francisco Fausto de Souza.

A 31 de agosto a Câmara Municipal comunica ao Presidente da Província o fato ocorrido. Este, por sua vez, exigiu que fosse feito um inquérito para levantar a responsabilidade pelo movimento, pedindo urgência nas providências e oferecendo, inclusive, reforço policial se necessário fosse. A peça processual, no entanto, desapareceu do arquivo do Departamento da Segurança Pública, não sendo tomadas outras providências.
Em ofício de 4 de setembro do mesmo ano, o Juiz de Direito de Mossoró, Dr. José Antônio Rodrigues, narra sua versão dos fatos ao Presidente da Província, Dr. João Bernardo Galvão Alcoforado Júnior. Na versão do Juiz, o movimento contava com um grupo de 50 a 100 mulheres, capitaneadas por D. Maria Filgueira, mulher do Capitão Antônio Filgueira Secundes, 3º Suplente de Juiz Municipal e D. Maria de Tal, mãe do jornalista Jeremias da Rocha Nogueira, pretenso chefe liberal.

O que diferenciou o movimento de Mossoró com os dos demais municípios, foi o fato de aqui ter surgido entre as mulheres, não tendo sido registrado a presença de nenhum homem. Eram mães, mulheres, irmãs e noivas defendendo os seus filhos, maridos, irmãos e noivos. Foi mais um capítulo da luta do povo mossoroense na defesa dos seus direitos e da sua liberdade.

Na próxima semana concluiremos esse artigo, falando sobre a defesa da cidade contra o bando de cangaceiros chefiados por Lampião em 13 de junho de 1927 e encerraremos com a primeira concessão de voto a uma mulher, dada em 25 de novembro de 1927 a Professora Celina Guimarães Viana.

Geraldo Maia – colunista

“É Notícia Mossoró”

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