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De secas e cheias

O binômio secas e cheias têm assolado o Nordeste brasileiro desde sempre. Tive acesso a uns depoimentos relatando o sofrimento de algumas pessoas vítimas desses fenômenos naturais, que nos ajudam a perceber o real tamanho do problema, principalmente quando sabemos que os fatos narrados aconteceram aqui em Mossoró.

O primeiro, que diz respeito as secas, foi tirado de um artigo escrito pelo Padre Manoel de Almeida Barreto para o jornal “O Mossoroense”, em 9 de março de 1947, se reportando a seca de 1915. Disse o autor num certo trecho do seu artigo:

“Uma dor imensa, carência de tudo. A vida era nada, a dor era tudo.

No açude do Saco, assisti dramas indescritíveis. As notícias de São Sebastião (hoje Dix-sept Rosado), eram desoladoras. O Diretor do Santa Luzia, então pároco, resolveu subir, rio acima. Em Canudos, após ligeiro encontro com Liberato, assistiu a uma cena nunca bem revelada.

Uma mulher caminhava a passos perdidos, soluçando aos ventos a elegia dos infinitamente tristes.

– Que há, minha velha? Disse-lhe.
– Sei dizer que ali, debaixo daquela quixabeira, perdi marido, filhos todos, somente eu fiquei para sofrer…

– E para onde vai?
– Sozinha, sigo para minha terra Pau dos Ferros. Choveu lá. Perdi tudo, porém, lá tenho parentes e está chovendo, é o que basta. Chuva em minha terra, nada falta. Mas, ali debaixo daquela quixabeira de meus pecados, perdi e deixo a minha alma! Sinto febre, estou a morte, não sei se alcançarei Pau dos Ferros.

Estou por tudo, pois a vida que tenho, está ali enterrada, perto, disse, daquela quixabeira. Algumas palavras de conforto e alguns tostões caíram naquela alma que saiu em pranto, cambaleando, ao farfalhar da brisa nordestina, sem esperança de chegar a terra, donde emigrou forçada.

“A cena é tão forte que o próprio autor, Padre Manoel Barreto, disse que para muitos isso pareceria um romance, mas para ele, que viu e ouvi, é realidade nua e crua.

Grandes secas atingiram o Nordeste brasileiro como as secas de 1877 e a de 1915, quando se deu a cena registrada acima.

Mas quando o inverno chegava trazia, às vezes, grandes temporais, que tanto quanto as secas devastavam a região. Tive acesso a um depoimento do Dr. Raul Fernandes, médico, filho do ex-prefeito Rodolfo Fernandes, que retrata bem essa situação, na enchente de 1917, portanto dois anos depois da tragédia da seca de 1915:

A família do Dr. Raul Fernandes estava no Sítio Boa Vista, vizinho ao dos Pintos, a meia légua de Mossoró. A casa ficava no centro da propriedade, a um quilômetro do rio, situada numa pequena elevação e cercada de carnaúbas.

Certa manhã de 1917, despertaram assustados. Estavam ilhados. A água subira no piso do alpendre, em frente à casa e espalhava-se numa grande extensão para todos os lados. Quase metade da cidade amanhecera inundada. A correnteza passava vários palmos por cima da barragem, a grande velocidade, produzindo estrondos. Choupanas cobertas de palha de carnaúba eram arrastadas pela enxurrada, assim também como animais, aves domésticas, árvores, malas, baús e objetos caseiros boiavam rio abaixo.

Notícias alarmantes chegavam do interior, relatando que as fortes chuvas que tinham caído na altura da nascente do rio, tinham deixados habitantes desabrigados, que vários barreiros tinham transbordado e que açudes e represas estavam se rompendo. A consequência era que as águas corriam formando ondas e se espalhavam nas partes planas do solo.

Rodolfo Fernandes tinha dormido na cidade e pela manhã, quando viu o estrago que o rio estava fazendo, mandou uma lancha a motor buscar a família que tinha ficado no sítio, em número de seis pessoas: o Dr. Raul, que na época estava com nove anos de idade, sua irmã Isaura Fernandes, sua mãe, uma tia e um tio, além da empregada. Segundo as lembranças do Dr. Raul, a lancha chegou cedo ao sítio, pilotada pelo Senhor Aristides e um ajudante, portando vara e dois remos pequenos. Lembrou que a todo instante se ouvia o soar agudo dos búzios, num triste lamento, pedindo socorro. Com toda a família a bordo, navegaram entre o carnaubal, na direção da margem, quando uma forte correnteza arrastou a lancha de encontro a uma carnaubeira, enchendo-a de água e logo depois esbarrou nos galhos de uma árvore que vinha sendo arrastada pela enchente. Com o impacto o jovem Raul caiu na água, sendo resgatado por Seu Aristides, que conseguiu nadar com o garoto até uma outra carnaubeira ficando ali agarrado, enquanto o restante da família, na mesma situação, agarrava-se as carnaubeiras. O ajudante saltou da embarcação levando a ponta da grande corda presa à proa. Nadou um pouco e andou em direção a terra. Amarrou-a numa árvore e passou a puxar o barco auxiliado pelos moradores da região. Assim a lancha alcançou a margem e começaram, então, a esvaziá-lo. Em pouco tempo voltava a flutuar. Foi puxado mais para cima, contra a correnteza e a corda amarrada em terra. O rapaz com a vara empurrava a lancha para fora, seguindo o curso das águas até alcançar as pessoas. Assim foram resgatadas todas. Mas ainda estavam longe da cidade. Foi preciso mandar um portador, que saiu a pé margeando o rio até Mossoró, com um recado para Rodolfo Fernandes, que enviou um barco maior, com motor, e foi nesse barco que conseguiram chegar a cidade, depois de muito sacrifício e risco de morte. No outro dia as águas começaram a baixar com rapidez.

Assim vive o Nordeste. Secas e cheias se alternando, destruindo cidades e campos, afetando a sua população já tão sofrida e descriminada. Como disse o Padre Manoel Barreto, “O homem do sertão é crente e adora o seu Deus. No infortúnio, apura a sua Fé. Quando tudo lhe falta, duas mãos postas servem de símbolo para um culto a Divindade. “

Que Deus nos proteja!

Geraldo Maia – Colunista

“É Notícia Mossoró”

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